domingo, 31 de outubro de 2010

Por essas areias fora

Desde agora até meados de Fevreiro, o blogue irá ser actualizado com menos frequência.
Continuarei, no entanto, a publicar sempre que possível.
Vemo-nos em breve, num país árabe perto de si.

sábado, 23 de outubro de 2010

Vou contar-te um segredo: és um débil mental.


Foi despedido, e anda aflito para ganhar uns trocos? Não passou no casting dos Morangos com Açúcar, por ser demasiado velho/feio? Ainda há esperança para si: inscrever-se na Casa dos Segredos, um dos shows televisivos mais enfadonhos e deprimentes do Universo.
Os Reality Shows da TVI são mais ou menos como aqueles monstros dos desenhos animados, a quem por muita tareia que se lhes dê, nunca morrem. Apenas voltam a ressuscitar, gemendo e urrando, erguendo-se, entre raios e trovões, da lama e das trevas, sob diferentes e inventivas formas.
Desta vez, cada concorrente tem um segredo, que tenta esconder dos demais. Na sua essência, o conceito, e a ideia por detrás dele, são os mesmos de sempre: uma telenovela minimalista da vida real (digo minimalista, por referência aos custos de produção) em que os concorrentes se entretêm a não fazer absolutamente nada durante vários dias.
Não concordo, no entanto, com aqueles que acham que os protagonistas deste espectáculo são uns pobres pacóvios sem noção do ridículo. Recuso-me também a ver nisto, como alguns, um “símbolo paradigmático da decadência de uma sociedade que se alienou a todos e quaisquer valores morais”. Voyeurismo e freak shows sempre os houve, e pessoas que fazem tudo por 15 minutos de fama, também.
Na verdade, tenho a dizer que, tendo em conta o estado actual do país, até percebo estas pessoas, e concordo com a sua escolha.
Se vivesse num mísero apartamento em Tercena, onde ganhasse 500 euros a trabalhar 60 horas por semana, fosse tratada abaixo de cão pelo meu patrão e o meu marido me batesse, os meus vizinhos fossem dealers e o meu quarto tivesse fissuras no tecto e pingasse dos canos, e o banco ameaçasse penhorar a minha casa; de bom grado aceitaria porventura mudar-me para uma grande, solarenga e bonita vivenda em que pudesse passar o dia a não fazer nenhum, à conta de um canal privado de televisão. Défice? Não, aqui ninguém ouviu falar disso. Aliás, aqui o ambiente é bem mais jovial. Como não se tem acesso ao exterior, não se é constantemente bombardeado pelos quilos de notícias alarmantes e reportagens suicidárias sobre a crise económica.
Também admiro a capacidade dos telespectadores, que conseguem estar duas horas a olhar para um ecrã em que nada acontece, para além das tentativas desesperadas dos apresentadores para criar intrigas entre os vários protagonistas, e das vidas extremamente desinteressantes dos mesmos. Não os censuro, se a alternativa são os telejornais, que se limitam a consistir num desfile diário de imagens de políticos em trocas de demagogias nas quais já ninguém acredita. Lamento que o espaço informativo em Portugal seja tão limitado. Mais tempo para outro tipo de informações, como as internacionais, seria sem dúvida passível de despertar o nosso interesse, e abrir-nos os olhos para algumas questões importantes, em vez de nos fazer cair na tentação de ver lixos televisivos.
Como é óbvio, programas como a Casa dos Segredos preenchem na perfeição a função de droga de alienação mental, em relação a questões, como a crise, que tememos mas que não podemos resolver. A verdade é que, entre o Sócrates e uma stripper descolorada de 40 anos, pelo benefício da dúvida, há uma tendência generalizada para preferir a segunda.

sábado, 16 de outubro de 2010

Saudinha

No decorrer de uma consulta de rotina, deparo-me no facto de que serei obrigada, proximamente, a fazer uma microcirurgia a laser. Nada de grave, apenas uma pequena operação, que pode evitar males maiores. Tem seguro? Pergunta a médica. Não, respondo eu (e não tenho, de momento, por razões que não me cabe aqui explicar). Ao que a senhora contesta imediatamente, levantando a voz, de sobrolho franzido, e postura prepotente: Pois, mas devia ter. (Quem é a senhora para me dizer o que eu devia ou não fazer – seria a resposta ideal, mas em vez disso calo-me, como boa paciente submissa e temente). Ao que se segue o seguinte diálogo:
- Então, como não pode fazê-lo pelo privado, tem de vir ter comigo no dia x às 9h30 da manhã, ao Hospital y. Arranje a morada de alguém lá ao pé, que eu espero por si na consulta de x.
- Está bem, obrigada – respondo eu, mais por cortesia do que pelo facto de me sentir propriamente obrigada a alguma coisa.
- Não tem que me agradecer, ofereça-me antes um livro seu, que ainda não me ofereceu nada.
Fiquei, imediatamente, com muita pena desta senhora doutora, que nunca tinha recebido nenhum presente meu! Como fui capaz de tal negligência? Para além dos cem euros por consulta, e das 3 horas na sala de espera, havia-me completamente esquecido de que, em decorrência lógica do simples facto de ser sua paciente, devia também trazer a Suma Divindade do Olimpo oferendas, para lhe acalmar a ira. Ou seja, se ganhamos 1/10º do seu salário, e somos tratados a despachar, devemos ainda pagar-lhe dízimos, à boa maneira medieval.
Claro, mas a médica mesmo assim foi uma porreira – pensava eu, ao entrar nesse dia no malogrado hospital, a quilómetros e quilómetros da minha casa – atende-me aqui, mesmo sabendo que não vivo no xy#*% (ao contrário do que agora diz a minha ficha). Espero meia hora. Nada. Ninguém sabe da doutora. Mas os médicos chegam sempre atrasados, vá-se lá saber porquê, enfim, é natural. Uma hora. Nada. Em vez disso, entretenho-me a observar o corredor (sim, estou de pé, e o consultório é ao lado de uma casa de banho) vão passando grupos de jovens estagiários aflitos, e médicas brejeiras dando-lhes indicações em altos berros, no que se parece com a série televisiva Grey’s Anatomy, versão Bairro das Fontainhas. Há também os velhotes queixosos em cadeiras de rodas, a quem as enfermeiras tratam condescendentemente, como se fossem crianças de 4 anos. Pessoas que levam respostas tortas dos funcionários, e que não se atrevem a dizer nada, por humildade, e por medo de verem o seu serviço atrasado ainda mais. Gente, gente. Tudo isto e muito mais, porque entretanto já passaram duas horas. Cadeiras para quê? É um hospital público, o povo que aguente, durante horas, de pé ou sentado no chão. Como alternativa, tem uma minúscula e atulhada sala de espera em que os pacientes enlatados - gemendo, tossindo, chorando, coçando-se - podem ver os vírus condensarem-se nos vidros embaciados pelas suas simultâneas respirações. Apesar de ser um facto que aí dentro está muito mais quentinho.
E eis senão quando, aparece um senhor da secretaria.
- Era só para a informar, de que a doutora afinal não vem – diz ele, num tom displicente e casual, como se isso fosse a coisa mais normal do mundo.
- Mas ela já na quinta-feira passada não apareceu, e disse-me que voltasse hoje! – contesta timidamente uma senhora de idade ao meu lado.
Que voltasse para a semana. Porque, afinal de contas, a graça da sua presença não é concedida todos os dias, mesmo que a tal se tenha comprometido. Se lhe tivéssemos dado um presente, talvez fosse mais simpática?
Daqui se depreende que a coisa funcione mais ou menos assim: o paciente perde um dia de trabalho, desmarca compromissos, muda a sua vida, acorda cedo para ir para xy*#& às nove da manhã, fica 3 horas à espera em pé, em condições sensivelmente sinistras; e o médico, se calhar, quando lhe apetecer, talvez, se digne a aparecer. Se não, teremos de voltar noutro dia, e fazer tudo de novo, quantas vezes for preciso. A responsabilidade não é de ninguém, e é tudo muito normal.
Porque no que ao nosso sistema de saúde diz respeito, ainda se funciona por castas.

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Tentando comprar maçãs

Há quem goste de preencher os seus tempos livres com actividades físicas estimulantes. Estou de acordo. Passar a semana inteira sentado num escritório pode ser deveras entediante, e a inércia, como todos sabemos, não é saudável, e faz mal ao colesterol. Assim sendo, chegando-se ao fim-de-semana, uma boa maneira de desentorpecer os músculos e combater a inacção é fazer jogging no parque, montar a cavalo, ou até mesmo surf. Eu, por outro lado, prefiro passar o meu tempo nas caixas rápidas do supermercado Pão de Açúcar.
Com efeito, cada vez que terminei grande parte do trabalho para a semana, percebo que se escasseiam as desculpas para sobreviver à base de Mc Donals, Pizza Huts; e outras coisas que vão contribuindo para que daqui a uns anos as minhas veias se pareçam, de tão entupidas, com uma manhã no IC19. E assim sendo, decidindo que está na hora de começar a ingerir alimentos saudáveis, vou ao Pão de Açúcar, onde existem estas magnificas caixas rápidas (parece que também as há no Continente, só que essas para mim já ficam um pouco fora de mão). Entre mim e as caixas-rápidas-self-service-faça-você-mesmo deste supermercado já existe todo um historial, que remonta a largos anos. Mas prometo ser breve.
Acontece que, dando de caras com o facto de todas as outras estarem ocupadas com filas de 20 metros, é inevitável que nos lancemos nesta magnifica aventura, que promete “ser super prática, e fazer-nos poupar imenso tempo”. É mentira.
Primeiro, porque mesmo que à nossa frente apenas estejam 4 ou 5 pessoas, o que cria assim a ilusão de que nos vamos despachar relativamente cedo, é com grande desagrado que constatamos, ao aproximar-nos, que na verdade apenas existem duas caixas a funcionar, e as dez restantes estão fora de serviço devido a “problemas técnicos”. Depois, percebemos que nos cabe esperar um bom bocado porque à nossa frente estão muitas pessoas de idade (ninguém mandou vir fazer compras a um feriado de manhã), que demoram a compreender como funcionam estes novos métodos. É frequente vê-las semi-cerrar os olhos, esbracejando, confusas, à frente do ecrã, à medida que vão lentamente passando os produtos pelo sensor. Não seria assim tão mau, se não tivessem decidido comprar meio supermercado.
Quando, meia hora depois, alguma caixa se liberta, embirramos com a pessoa à nossa frente, porque olha para o boneco em vez de perceber que já podia avançar. Tocamos-lhe ao de leve no ombro, dizemos “olhe” com um ar enjoado, e suspiramos muito, resmungando baixinho “andam a dormir”. No entanto, quando chega a nossa vez, constatamos com desespero que o nosso campo de visão não nos permite ver que caixa fica livre nem quando, o que faz com que andemos de um lado para o outro, muito aflitos, de pescoço esticado, a tentar perceber se já podemos avançar. Nessa altura, não é raro termos já alguém atrás de nós a tocar-nos ao de leve no ombro, e a dizer “olhe”.
Chegou finalmente a nossa vez, e caminhamos, apressada e entusiasticamente, para o lugar. Mas é aqui que surgem questões e dúvidas existenciais que nunca dantes se nos tinham posto na vida. Contemplando abismados o ecrã, percebemos que não fazemos na realidade a mínima ideia se o que temos à nossa frente são “maçãs fuji”, “maçãs golden”, ou “maçãs golden vida Auchan”.


E as peras que escolhemos, serão “pêra william’s ou “pêra rocha do oeste”? Quando achávamos que as coisas não podiam piorar, eis que os produtos não passam no scanner; e, finalmente, a máquina começa a emitir mensagens sem sentido, e a apitar altíssimo. Carregamos, em pânico, no botãozinho que chama a senhora. Começamos a sentir uma grande pressão, e olhares matadores atrás de nós.
Quando a assistente finalmente chega, diz-nos, ao fim de uma breve análise, que não há nada a fazer. A nossa caixa deixou simplesmente de funcionar, devido a problemas técnicos. Face a isto, resta-nos, se ainda o quisermos, esperar mais 20 horas numa das outras. E assim se passa um magnífico feriado.